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Residência Literária


4ª ResidênciaLiterária

Confira o texto de Cristina Drios

Cheguei já de noite, nove horas, dez horas (eu escrevera anos) de voo e duas horas de carro depois de partir, atravessando vários fusos horários, deixando para trás uma rotina costumeira, confortável, despindo-me de mim mesma, largando a minha vida como a cobra larga a pele onde já não cabe.
Viajar é isso: é preciso largar a nossa velha pele para que outra, nova, possa crescer em seu lugar e possamos nós crescer também. Então, nesse lugar sem lugar e nesse tempo sem tempo da viagem é preciso estar pronto para o desconforto, abrindo o peito à novidade. Sem isso, de nada vale sair do casulo.
O meu olhar tenta abarcar tudo, apesar do cansaço, apesar da noite caída, tenta sugar do mundo que corre do lado de lá do vidro do carro, a substância das coisas. Ao longe, as luzes das cidades desfilam, o trânsito, os sinais rodoviários, as matrículas, tudo igual e, no entanto, tudo diferente. A primeira impressão é de uma familiaridade total eivada da maior estranheza.
Esta é a minha primeira vinda ao Brasil. Entendo tudo e não entendo nada ao mesmo tempo. A língua é a mesma, só que fala de coisas e lugares desconhecidos. Talvez seja apenas cansaço, penso. Preciso dormir. Desperto cedo, acorro à janela do quarto. É sábado e, do outro lado da rua, um pouco abaixo do hotel, há um prédio cujas fundações começam a brotar da terra. Na minha cabeça, oiço Chico Buarque cantar: Subiu a construção como se fosse máquina. O azul do céu sobre o recorte da Serra de São Domingos enche-se das vozes dos homens trabalhando, do barulho do estaleiro. Esticando o pescoço, vejo a frontaria neoclássica das Thermas Antônio Carlos e o telhado do Palace Hotel por de trás das palmeiras do Parque José Afonso Junqueira. Sei de cor os nomes antes de conhecer os lugares. Vim antes, vim muitas vezes, antes de realmente vir. Tenho personagens que deambulam pelo parque, andam por aí, pernoitam nos hotéis, cantam e jogam nos cassinos, entram e saem da paisagem e da minha cabeça.
Então desço do quarto, tomo o pequeno-almoço na grande sala vazia do hotel, com a mesa do buffet posta como um risco ao meio no cabelo. Na receção encontro o mesmo senhor pequenino, abafado por de trás do balcão, que me recebeu na véspera e a quem perguntei pelo horário do café da manhã, temendo que não entendesse o meu português com cheiro a manjerico e sardinha assada. Bão diaaa, chilreia o senhor José.
Ontem vestia o branco da camisa, meia manga, desabotoada, vestia o ar requentado, morno e húmido da noite, soprado pela modorra da ventoinha. Recito os versos de Drummond. E agora José?… Quer ir para Minas, mas Minas não há mais. José, e agora? O senhor José não parece nada aflito, sente bem Minas debaixo dos pés, a sua terra não há de lhe fugir, até porque hoje desfez-se das agruras da semana, encarnou o sábado, numa calça impecavelmente vincada, camisa verde-papagaio com gravata azul-celeste, como as araras que gritam no céu de Poços de Caldas, tal qual as de Lisboa. Curiosidade número um (sou muito sensível à luz dos lugares): a luz de Poços é muito parecida com a luz de Lisboa (ou vice versa). Curiosidade número dois (ainda não as vi, apenas ouvi): os mesmos gritos das araras ecoam no céu.
Não tenho a certeza se o senhor José entende o meus cumprimentos ou se tenta apenas reconhecer-me entre os hóspedes que chegam e partem, não tenho a certeza de nada. Ficarei uma semana, acabará por se lembrar de mim, penso, e depois esquecer-me-á para sempre. De qualquer modo, o barulho da construção sobrepõe-se à possibilidade de uma conversa. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego, canta de novo Buarque na minha cabeça.
Sentada numa mesa à janela, procuro a brisa, e tateio novos sabores. Há sumo de caju e de goiaba ou tem suco de caju e goiaba, conforme o falante. Há ou tem pão, bolos, pão de queijo, goiabada, doce de abóbora e algo escuro e pegajoso que não identifico (saberei depois que é doce de leite). O café coado é delicioso, bebo todo esse mar negro na xícara de um trago.
Do outro lado da rua, uma senhora acaba de chegar com sacos de compras e entra no prédio de habitação. Parou, para inspecionar um canteiro onde despontam espadas-de-são-jorge. Lembro-me das espadas que coloquei na minha secretária: afastam o mau-olhado e os males em geral. Foi o que li num artigo da internet. Não sendo crente nisso, mal não fará, até porque gosto do seu verde listado, das lâminas amarelas, em cercadura.
A senhora do prédio em frente também deve gostar delas. Passado um pouco, reaparece com dois garrafões e rega todos os canteiros da rua defronte do prédio: primeiro a árvore, depois os arbustos, e finalmente as espadas. Um gato surge à janela no primeiro andar, seguindo com olhos ávidos o voo de um pássaro. Gostei dos modos da senhora, genuinamente interessada nas plantas da rua, e nos modos do gato, já velho, desejoso, mas ciente da impossibilidade de caçar os pássaros. Sinto falta dos meus gatos. Registo mentalmente a cena, tiro fotografias, sem fazer ideia porquê.
Agora entendi. O tema do Flipoços 2024 é a crónica. Na mesa, Chico Lopes desafia Inácio Loyola de Brandão para, de entre as crónicas que escreveu, contar a sua preferida. O escritor responde ao outro, após um silêncio, que é impossível: já escreveu mais de oito mil, uma por dia durante anos. Lopes insiste, como ele arranjou material para escrever uma crónica diária durante anos a fio, deve ser tarefa difícil, pergunta. Então, quando tudo já parecia perdido, cortando o silêncio, Brandão toma balanço e larga a falar. Subitamente diz, quando tinha nove anos, a minha professora me disse que, se eu queria escrever, teria de saber olhar pela janela.
Anos mais tarde, um famoso jornalista, reiterou isso e aí Brandão entendeu: é fácil escrever uma crónica por dia, bastar olhar pela janela (e pela porta). Basta olhar o mundo em redor, as coisas, os acontecimentos, as pessoas. Basta olhar o hotel, o senhor José, o gato, a senhora do prédio em frente. Eles ficarão em Poços de Caldas quando eu, após a minha transitória estadia, deixar a cidade, regressar a casa, a Lisboa. Eles são parte da cidade, são o sangue, o coração, as mãos e braços da cidade. O meu olhar fixou-os para lá da janela. Por isso, esta crónica é sobre eles.
Então Brandão contou a historieta da senhora que lhe disse, num vai e vem de rua em que não se acertavam para se desviarem, senhor, obrigada por dançar comigo essa manhã. Aqui é a cidade que dança comigo nesta manhã de sábado, tão azul e verde, tão ensolarada, descontraída e risonha. E depois Brandão disse, quando parecia ter reentrado mutismo adentro, reabrindo-se de súbito, vou contar-vos a história da senhora que vivia perto de meu apartamento e regava os canteiros todos os dias.
A minha atenção disparou, pontapeada para a cena dessa manhã. O escritor continuou: na rua, havia um ipê frondoso e lindo, disse, que se cobria de flores, um ipê-amarelo. Brandão reparou que a sua vizinha regava-o todos os dias.
Mesmo quando chovia. Um dia, o ipê morreu, secou. O escritor cismou naquilo e pediu a um laboratório uma análise à árvore. O resultado foi inequívoco: morrera envenenada. Brandindo a sua revolta, Brandão e os vizinhos foram pedir satisfações à senhora. Sem pejo, ela confessou o crime, sim, ela envenenara o ipê, disse, não suportava mais aquelas flores amarelas e peganhentas sujando-lhe a calçada.
Embora sentida pelo triste destino da árvore, por um instante comunguei com a senhora, admito: em Lisboa, os jacarandás que florescem em glória lilás em maiojunho, largam as suas flores viscosas que empapam a calçada, lindas e horríveis, ao mesmo tempo, brevíssimas. Até eu, por vezes, sentiria vontade de envenenar os jacarandás, caso não ostentassem a beleza de um nome perfumado, em tupi guarani.
De repente, alarmei-me: nessa mesma manhã eu vira a senhora que vive no prédio defronte do hotel regando uma árvore alta e linda (que eu não soube identificar). Qual a probabilidade de ouvir alguém contar no mesmo dia uma história igual? Deverei ler nisso um sinal? E se esta senhora, como a outra, estiver a envenenar a árvore? Deverei deixar um recado na portaria do prédio, chamar o porteiro, o sindico, alertar para essa possibilidade? Passarei por louca… ou deixarei morrer a pobre árvore? Que hei de fazer para salvar essa árvore de uma rua de Poços de Caldas?
Uma coisa eu sei: nada nunca é (ou pode não ser) o que parece. E também sei que a realidade vence aos pontos a ficção. Outra coisa: olhar pela janela (metafórica e literalmente) deu-me o material para esta crónica. Alguns dias depois de chegar a casa, já em Lisboa, fui rever as fotografias que tirei ao prédio. Perscrutando a fachada de vidro que permitia olhares indiscretos para dentro dos apartamentos, vi o gato à janela, a senhora regando. E só então reparei no nome do prédio, bem par cima da porta de entrada: IPÊ.
A árvore regada nessa rua e na história de Brandão, era, claro, um ipê.
Não estou inventando, posso omitir algo, afunilar o foco num pormenor, da visão macro à grande angular, mas não estou inventando. Convido-vos a subir a rua que leva até ao Hotel das Águas, pedir ao senhor José que vos deixe tomar uma xícara de café, bem aromático, na sala de refeições, junto à janela, enquanto esperam pelo gato e pela senhora. Se nada acontecer, é porque não é sábado.


O SENTIDO DO MUNDO
Alguns dias mais tarde, no dia em que conheci a escritora Kátia Bandeira de Mello e o seu romance patafisico, comprei um pacote completo para usufruir das águas sulfurosas, badaladas da cidade, massagem e banho.
Poços de Caldas nasceu em redor dessas nascentes, com as suas termas, balneários, hotéis, cassinos e parque. O meu próximo romance tem por cenário as cidades termais, geminadas, de Poços de Caldas e das Caldas da Rainha. Confesso que me esqueci de perguntar ao senhor José pelos túneis que ligam as cidades por debaixo da terra e do fundo do oceano: de certeza existem embora ninguém tenha visto tal coisa. Ambas as cidades partilham esse berço e traço comum: nasceram das águas, deram-se ao mundo pelas águas e, após vicissitudes e declínios, retomam viço graças ao regresso à moda e à necessidade de uma mens sana in corpore sano.
Eu ia, sem o saber ainda, não tanto por necessidade física, mas artística, patafísica. Foi quando cai aos trambolhões no quadrado da sala da mecanoterapia que entendi, creio, toda a problemática. Pensemos, a mecanoterapia é uma técnica destinada a tratar a doença por meio de aparelhos mecânicos, a patafísica visa tratar o absurdo por meio de estiradas paródicas: na vida, mais tarde ou mais cedo, não há como escapar nem a uma coisa nem a outra, nem à doença nem ao absurdo. Às vezes, a doença anda à vela do absurdo ou vice-versa.
A massagista acolheu-me com um sorriso doce, chignon e bata-quimono, na sua salinha decorada que parecia um recanto de uma nave espacial. Estendida na marquesa, enfiei o rosto no buraco-portal, e enquanto me massajava a cervical dorida, decretou com ciência, que a dor na escapular esquerda derivava de problemas com o sexo masculino. Assenti, embora, não me ocorresse nada em particular, pois pode sempre dar-se qualquer coisa nas nossas vidas de que não nos tenhamos apercebido. O sexo masculino, generalizando e no sentido romântico, tal como a vida real, dá trabalho, dá mais chatice que gozo, raramente consegue estar à altura da nossa imaginação e, o que é mais aborrecido ainda, não tem qualquer noção da sua insignificância. O que a gente não fala, o corpo grita, sentenciou a massagista, e não tive outro remédio senão assentir de novo, agora com total veemência.
A moça era devota de Nossa Senhora de Caravaggio. De súbito, estávamos nessa igreja, numa longa fila de crentes, esperando sob um sol inclemente o padre, que por imensa que seja a fila, atende a todos com uma palavra de conforto, aconchego, uma benção. Chegámos lá, no dorso de uma nuvem, porque tive de lhe contar que estava participando no festival literário Flipoços 2024 como escritora portuguesa residente, com o meu livro sobre o pintor italiano Caravaggio. A massagista não fazia ideia quem fora tal pintor do barroco seiscentista, a Madonna chegou primeiro, uma aparição, assim reza a lenda, às dezassete horas de 26 de Maio de 1432, no mesmo sítio perdido em Itália.
A massagem terminou e fui direcionada para o balneário feminino, por escadas e corredores de outro século. Foi então que aterrei na tal sala da mecanoterapia: máquinas de couro e ferro, argolas e atilhos, estiradores e barras, como artefactos de tortura. É aqui o museu, perguntei a uma moça que se materializou ali. Não, não, tudo funciona, replicou ela, para meu espanto. E isto? Também, trata-se de um forno Beer. Uma pessoa enfia a cabeça num escafandro quadrado e fica dilatando os vasos sanguíneos e as ideias lá dentro. Deve ser eficaz, é uma espécie de forno que não nos coze e tem nome de cerveja. Pura patafisica.
Mas eu queria muito era mergulhar nas águas sulfurosas, vinte minutos a trinta e sete graus, o máximo que o corpo consente, enquanto a pele escorre e escorrega a oleosidade sulfurosa e os óleos essenciais de alecrim e menta. Essa imersão tem uma ação sedativa, purificadora, salvadora quiçá, a partícula de deus deve estar nesse minúsculo conforto. De molho na banheira, cheirosa, refastelada, olhava o relógio pregado na parede com uma sensação de vitória sobre o tempo: um relógio de rebordo e ponteiros verdes numa parede de mosaico de metro branco com debrum verde. Um senhor muito amável, de que não recordo o nome, talvez Itamar ou Keiran, viera buscarme
à sala de espera, tomara nota dos aromas pretendidos, sumira para ir preparar o banho e voltara para me introduzir nesse mundo liquido, alertando-me para não me fiar no relógio, pois está parado, disse, eu mesmo baterei à porta quando terminar o tempo. Mas dentro da água sulfurosa o tempo dobra, não termina nunca, ele é que não sabe. Pensava ainda no tal corpo que grita o que a pessoa não fala, dizendo para mim mesma, que seria melhor passar a desopilar tudo, com toda a gente, especialmente com o sexo masculino, o que quer que isso signifique.
Saí das águas renascida como a madonna de Boticelli, e dando a volta pelo interior do edifício fui tomar um café no espaço contiguo Café do Colono. Tinha combinado encontro com a escritora Sílvia Schmidt que me ofereceu uma amizade linda como um pé de jabuticaba e o seu livro Encontro. Chegou acariciando um cartuxo de papel pardo, onde na terra, bem ajeitada, despontava uma muda. É um ipê-amarelo, disse sorrindo, vou botar no sítio onde estou morando. Olhei para Sílvia como se o mundo acabasse de se encaixar num sentido inquestionável e eu nunca mais houvesse que duvidar disso. O ciclo se fecha, pensei. Aqui está a minha segunda crónica. Posso estar inventando, posso acrescentar e retirar factos a meu bel-prazer, ninguém poderá confirmar a veracidade, basta aqui a verosimilhança. Não creio, nem mesmo que Sílvia me vá desmentir (todo o escritor é um grande mentiroso), mas posso estar inventando: escrevo uma crónica. Convido-vos a subir a escadaria até ao edifício das termas, tomar uma xícara de café no jardim de inverno, junto ao lago com o repuxo e as plantas exóticas, enquanto esperam pela Sílvia e por mim.
Não por acaso, pois tal não existe, terminei a escrita desta crónica em minha casa, em Lisboa, no dia 26 de Maio, às 16h. Com a diferença horária, a aparição de Nossa Senhora de Caravaggio deu-se nesse exato momento, há precisos 492 anos. E, isso, juro, não é invenção.